terça-feira, 8 de setembro de 2009

Terapia Comunitária

"Uma família pobre, dez filhos, naturais e adotados. Interior do Ceará, o pai trabalha num lugar após outro, na equipe que cava poços, a família acompanha. Cristãos. Adalberto quer ser padre. Conseguem bolsa num seminário. As informações que os padres-professores lhe passam não correspondem às suas crenças. Incomodado, prossegue os estudos, se forma em medicina. Faz teologia no Vaticano, filosofia na Itália, doutoramentos em psiquiatria e antropologia na França. Volta às suas origens, interior do Ceará, junta conhecimentos acadêmicos a sabedorias populares.

Cria uma metodologia simples que estimula solidariedades imediatas. Em roda, um espaço para cada um falar de problemas do cotidiano, de questões que afligem, trazem insônia, incomodam. O pai que bate na mãe, o filho que se droga, eu mesmo que não consigo trabalho. Ou que estou deprimido, sem saída.

Antes se combinam umas regras. Aqui não vale julgar nem dar conselhos. Todos terão oportunidade de falar. Não é um espaço para segredos. Só se fala a partir da própria vivência, da própria experiência. Cada fala começa com Eu – este talvez o maior desafio. Quando um fala, todos escutam. Se durante o andamento do encontro alguém se lembra de uma música, um provérbio, uma piada, uma história curta, levante a mão, peça licença, diga seu nome e conte ou proponha o canto. É lembrado, como estímulo à participação, que quando não é falado o que está dentro de si, vem a gastrite, a depressão, o mal estar, a doença. Quando a boca cala os órgãos falam. Quando a boca cala os órgãos adoecem.

Alguém quer falar do seu problema? O silêncio inicial é seguido de desabafos. Os problemas pessoais são apresentados. Quem coordena a roda, o terapeuta comunitário, ao final de cada fala, anota, tenta sintetizar, pergunta: veja se entendi direito. Seu sofrimento é porque você não consegue renda suficiente para manter sua família? Se é aceita a síntese, o terapeuta agradece, passa para outro, assim por diante. Quando casos suficientes são apresentados, propõe uma nova fase.

Peço agora que, resumidamente, os que desejarem indiquem o caso com o qual se identificam e digam porque. Um e outro se identifica com uma ou outra das questões apresentadas.

Agora vamos votar. Lembro que vamos escolher, não o caso mais importante, mas o caso com o qual mais pessoas aqui presentes se identificam. Cada um só pode votar uma vez, todos podem votar. E, repetindo cada síntese feita anteriormente, solicita a votação para cada um dos problemas apresentados. Conta junto com todos e anota os votos. Agradece com atenção, nominalmente, a cada um dos que apresentaram suas questões. Deixa claro que, após o encontro, poderá conversar com aqueles que sentirem necessário.

Dirige-se agora àquele que apresentou o tema escolhido. Por favor, conte mais, para nós todos, sobre o que lhe aflige. Sempre com a intenção de cuidar, cada um de nós pode lhe fazer perguntas. E o caso é contextualizado. Como exemplo, se o escolhido foi o do pai que bate na mãe: meu pai bate na minha mãe toda vez que bebe. Ele está desempregado, fica nervoso, bebe. Minha mãe não sabe o que fazer, nem eu, o filho, sei. Sofre calada. Entro na frente, defendo minha mãe, acabo apanhando também. Quando passa a bebedeira, muda tudo. Meu pai sofre com sua fraqueza, fica num canto, mudo, os olhos tristes...

Um faz uma pergunta, outro outra, até o momento que o terapeuta, considerando suficientes as informações, solicita, pelo nome, a quem apresenta seu sofrimento: José, estamos agradecidos por você compartilhar conosco o problema que vive. Pedimos agora que você ouça, em silêncio, o que alguns de nós vamos falar aqui.

E lança um mote, que pode ser específico – quem já teve em casa um pai que bate na mãe e pode agora compartilhar conosco sua experiência? Ou um mote que amplia o tema: quem já sofreu violência doméstica e pode compartilhar conosco sua experiência? Quem desejar falar, por favor, levante o braço, espere sua vez, diga seu nome.

Um após outro são apresentadas situações semelhantes. Minha vó também apanhava muito do meu avô, que era muito bravo e ignorante. Até que um dia nós combinamos e falamos juntos para ele: ou o senhor para e se cuida ou nós vamos tomar uma atitude, vamos embora, vamos pedir ajuda a quem o senhor respeita. Alguém chora. Outro apresenta uma música, inicia e quem sabe acompanha: encosta sua cabecinha no meu ombro e chora... E os compartilhamentos de casos vão se sucedendo.

Já a caminho da finalização, o terapeuta convida todos para ficar de pé, mais próximos, ainda em roda, braços nos ombros ou na cintura. Sugere um balanço de corpo coletivo. Alguém lembra uma música. Tou balançando, mas não vou cair, não vou cair... O terapeuta pergunta: o que estou levando daqui? Um diz Calma, outro Conforto, mais um Solidariedade.

Devagar a roda se desfaz, um e outro se abraçam, formam-se duplas e grupos de conversas. A confraternização traduz a humanidade presente.

Os encontros de Terapia Comunitária são abertos. Há os que vão com freqüência, há os esporádicos. Há jovens, velhos, adultos, pobres, ricos, classe média. Têm em comum a possibilidade de se compreender emocionalmente.

No mesmo encontro surgem questões variadas. Desde o adolescente – que vou fazer da vida agora que terminei o segundo grau, preciso ganhar dinheiro e não me sinto preparado nem para escolher uma profissão nem concorrer no mercado -, passando pela senhora classe média alta (fomos assaltados na rua, meu marido foi baleado, eu gritei desesperada à procura de ajuda, mas ele morreu ali, nos meus braços... e meu filho hoje me culpa pela morte do seu pai... como sofro...), até a moça que sofre, com os filhos, violência doméstica e não sei o que fazer.

As identificações são quase sempre imediatas. Os relatos correlatos emocionam e confortam um e outro. A solidariedade se instala, independente de classes, raças, credos, gêneros. Somos semelhantes, estamos próximos".

Adalberto de Paula Barreto, criador da metodologia, em entrevista a Letícia Lins e Isabela Martins, d’O Globo, 22 de abril de 2007:

Na favela lidamos com a miséria material que nutre a miséria psíquica.
Já na Suíça, encontrei a miséria afetiva, o esfriamento das relações.
Na Europa, não achei favelas miseráveis como as nossas,
mas encontrei favelados existenciais.

Texto de Luiz Fernando Sarmento

Para entrar em contato com o autor, escreva para luizfernando@sescrio.org.br

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