segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Educação Somática

"Investindo na tecnologia interna

Haveria possibilidade de um corpo disponível, rico em sabores, tons, semi-tons e outras oitavas quando estamos submetidos aos inúmeros desconfortos do cotidiano de tarefas e obrigações ? Afinal, estamos na Terra para viver ou para sobreviver ?

Como vivemos o corpo na atualidade ? Lutamos por sobreviver em meio a ideais inatingíveis de beleza vendidos pela mídia; à hipersexualização e uma medicalização por vezes abusiva. Um corpo que se molda ao império do virtual; às rápidas e dramáticas transformações do meio-ambiente e às cada vez maiores exigências de produtividade e competitividade no mercado de trabalho.

Será que é a sociedade que nos impõe um modo de vida que “achata” o potencial do corpo? Mas se a sociedade é feita de nossa própria carne, como é que fica? O que fazer ? São reflexões desse tipo que proponho no artigo a seguir.

Corpo contemporâneo: entre aparência e autenticidade

Até que ponto privilegiaremos a compra de produtos que realçam nossa aparência em detrimento de um tratamento de saúde? Até quando sacrificaremos nosso conforto por causa das exigências da moda? Até quando investiremos no nosso “look”, negligenciando nosso bem estar? Que peso a estética do corpo jovem, magro e “malhado” tem na nossa intimidade, na nossa subjetividade ?

Essas são algumas das perguntas às quais me deparei desde minha adolescência. Ao longo de minha experiência de 12 anos como professora de Educação Somática, observei que muitos dos problemas de saúde trazidos por meus alunos têm ligaçao com uma batalha interna : aparência ou autenticidade? Até que ponto estou pronto a sacrificar minha integridade para conformar-me às normais culturais de beleza e comportamento?

Enquanto profissionais da área de educação, saúde, cultura e artes é importante que possamos reconhecer tanto os modelos de corpo rejeitados quanto os estimados, vigentes e marginais de nossa cultura e da de nossos alunos a fim de compreender até que ponto esses modelos engendram padrões motores que estão intimamente ligados a problemas biomecânicos, psicológicos e relacionais. Reconhecer esses padrões motores fixados por valores culturais significa contextualizar o “problema” dentro de uma perspectiva sociocultural – seja ele dor física, má adaptação social, desconfortos psicológicos ou deficiências cognitivas. Desta forma, como profissionais, podemos sugerir estratégias de transformação do “problema” que sejam mais concretas, precisas e duráveis.
Tecnologia interna

Não se pode dizer que vivemos em uma época de grandes desequílibrios. Sempre houveram guerras, fome, miséria, desigualdade social. A diferença é que no passado, a informação circulava muito mais lentamente do que hoje. Temos a televisão, a Internet e os jornais para nos informar dentro de nossa casa todos os dias de quase tudo que se passa a nível mundial.

Para fortalecer-se e ser capaz de enfrentar os desafios de cada época, o homem sempre desenvolveu métodos de cura, manutenção da saúde do corpo, mente e espírito. Hoje temos acesso a uma gama de abordagens que vão de Tai Chi Chuan a Yoga, passando por Chi Kung e Reiki. Muitos são os acupuntores, osteopatas, massoterapeutas, musicoterapeutas, homeopatas. O Crâneo-sacro, o Rolfing, a Gestalt, Reich, Lowen e Biodança podem não serem “populares”, mas não são difíceis de se encontrar nos grandes centros urbanos.

Essas abordagens ditas “holísticas” ou “alternativas” podem ser consideradas uma tecnologia interna porque são compostos de técnicas que usam recursos inerentes ao organismo humano: a respiração, o movimento, o ritmo das funções vitais, os meridianos, etc. Elas investem na capacidade de autoregulação, sistema que garante o equilíbrio global da pessoa, primando pela prevenção da doença ou pela recuperação. A intervenção medicamentosa ou cirúrgica só é necessária caso o sistema de autoregulação não cumpra bem seu papel. Desenvolver sua tecnologia interna equivale a dar suporte ao poder de auto-cura do organismo.

Dentro dessa família de abordagens holísticas, destaca-se o campo da Educação Somática, composta de diferentes métodos que se interessam pelo desenvolvimento da consciência corporal e pela reeducação do movimento: Anti-ginástica, Técnica de Alexander, Feldenkrais, Eutonia, Ginástica Holística, Continuum, Body-Mind Centering, Somaritmo, Ginástica Sensorial e Pilates. Cada método de Educação Somática tem sua própria história e técnicas, porém partilham o princípio de que o homem é um ser total que, como todo ser vivo, possui recursos internos para manter-se em equilíbrio físico, psíquico e social.

Todos os métodos de Educação Somática abordam a pessoa através de movimentos do corpo:

· Movimentos “sustentados” pela respiração;
· Movimentos executados com o esforço justo, visando à regulação do tônus muscular de todo o corpo;
· Movimentos que despertam a orientação do corpo no espaço;
· Movimentos estruturantes visando direção e alinhamento da estrutura óssea;
· Movimentos de alongamento fino e preciso, solicitando tendões e fáscias;
· Movimentos que utilizam a imaginação visando ampliar a imagem corporal;
· Movimentos lúdicos para a regulação do sistema nervoso;
· Movimentos inusitados para a desconstrução de padrões motores “crônicos”.

À primeira vista, poderíamos pensar que os métodos de Educação Somática se parecem com a Yoga, o Tai Chi Chuan ou com dança. Na verdade, a Educação Somática é um campo em si. Historicamente, os métodos de Educação Somática começam a ser estruturados na Europa e em seguida na América do Norte, um pouco antes da Primeira Guerra Mundial. Seus criadores são, em sua maior parte, cientistas e artistas. Os métodos são criados por ocidentais para ocidentais. Uma primeira diferença: embora o campo da Educação Somática postule que o homem é um ser total – corpo, mente e espírito – e que o corpo é indissociável da consciência, nenhum dos métodos é ligado a um sistema religioso em particular como o hinduismo, a vedanta ou o taoismo. Uma das especificidades da Educação Somática é que nenhum de seus métodos pede do aluno a maestria da forma. A tônica das aulas de Educação Somática é uma exploração dos movimentos propostos e não o aperfeiçoamento de posturas ou coreografias fixas como o Tai Chi e a Yoga. Durante o aprendizado da sequência de movimentos do Tai Chi ou dos asanas da Yoga, o aluno toma o professor como modelo. Nas aulas de Educação Somática, o aluno não copia os movimentos do professor, mas é guiado por comandas verbais: a execução dos movimentos é sentida e vivenciada de modo pessoal por cada um. Porém, não se aborda a expressão do movimento, como os diversos tipos de dança propõem.

Terapêutico, mas não terapia

Não é raro que, durante as aulas de Educação Somática, um aluno chore, ria, tenha um acesso de raiva ou até se lembre de situações traumáticas. Quando um movimento aciona nosso sistema nervoso autônomo e os ramos simpático e parasimpático (que se ramificam pelas vísceras, vasos, glândulas, situando-se ao lado da coluna vertebral), acionamos o sistema que coordena as funções não-voluntárias: a digestão, a circulação, a respiração, a transpiração, a secreção de hormônios e as emoções.

Imagine agora que todos os dias nosso corpo mobiliza uma quantidade de energia enorme para manter nossos personagens no palco da vida e realizar todas nossas obrigações cotidianas. Então, é possível que quando desarticulemos nosso modo habitual de funcionamento de vigília, acionando o sistema nervoso autônomo, uma “descarga” aconteça: riso, choro, raiva, náusea...

Porém, os métodos de Educação Somática não pressupõe uma catársis, nem a interpretação do conteúdo psíquico do aluno. O professor não facilita a emergência de crises, nem propõe soluções para elas. Um método de Educação Somática se diferencia de uma abordagem terapêutica pela maneira como aborda a emoção. Mesmo se alguns métodos adotam uma linguagem psicológica ou apresentam aspectos terapêuticos eles não são uma terapia. Por isso, aos que me perguntam se sou terapeuta, respondo que no contexto das aulas, sou educadora. Terapeuta e educador são papéis muito diferentes que devem estar claros para aquele que os assume.

A particularidade da Educação Somática é a transmissão de instrumentos que despertam no aluno o gosto pela auto-investigação através do movimento de seu corpo. Na medida em que a consciência de uma pessoa se expande – usando o corpo como veículo dessa expansão – mais ela estará apta a fazer sentido de suas próprias emoções. Uma pessoa desenvolve sua capacidade de sentir estará mais apta a fazer escolhas que contribuam à realização de suas potencialidades.

Ampliar sua própria noção de corpo significa desafiar velhos padrões motores para que o cérebro faça novas conexões neuronais. Investir em nossa tecnologia interna. Descobrir que é possível se resgatar a autenticidade somática, tantas vezes deformada por valores sócioculturais. Descondicionar o corpo. Mas, como é possível abandonar nossas couraças de defesa se vivemos pressionados pela competição profissional, duros de medo, impotentes diante da injustiça social e violados pela poluição? O que fazer quando as vivências das aulas de Educação Somática entram em conflito com o estilo de vida que levamos?

Mudanças físicas correspondem a mudanças de percepção... e vice-versa! É como fazer uma obra na casa. Há de se distinguir o que devo jogar fora e o devo guardar. Às vezes, é preciso desarrumar a casa toda. Durante a reforma, a casa vira um caos. Pouco a pouco, uma nova ordem aparece.

Quando não temos acesso ao “sentir”, estamos à mercê do mundo “exterior”. A prática dos movimentos propostos pela Educação Somática nos leva a refinar a capacidade de observação de nosso próprio funcionamento. Quanto mais íntimos somos de nosso universo corpóreo, mais aptos a negociar com as exigências do “mundo externo” e a encontrar soluções criativas para lidar com as pressões. O processo de transformação somática é longo, mas o aprendizado feito é sólido, profundo e indelével. Um trabalho de joalheiro."
Para maiores informações acessar http://www.movimentoes.com/ ou entre em contato com Débora Bolsanello, a autora deste artigo.

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